No último dia útil de 2023, os profissionais envolvidos no complexo universo tributário federal foram surpreendidos por uma notícia que reverberou negativamente: a publicação da Medida Provisória nº 1.202/23. Essa MP, em essência, abordou três temas cruciais: a revogação da CPRB (Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta) acompanhada pela reintrodução parcial da contribuição previdenciária sobre a folha de pagamentos, a parcial revogação do Perse e a limitação da compensação de créditos decorrentes de decisões judiciais transitadas em julgado.
A presidência da República justificou a emissão desta MP com o claro objetivo de ajustar as bases tributárias para cumprir as metas fiscais. No entanto, além do desconcerto causado pela data de sua publicação, em 29/12/2023, há inúmeras falhas na medida, algumas das quais merecem destaque.
Primeiramente, a MP não atende ao requisito constitucional de urgência, apesar da importância dos tópicos abordados. Isso ocorre porque a MP só entrará em vigor em abril de 2024 para a reoneração da folha de pagamentos, a revogação parcial do Perse (para o IRPJ, somente em 2025) e para a alíquota reduzida da contribuição sobre a folha de determinados municípios. A urgência só seria justificável se a MP tratasse de tributos que majoritariamente cumprissem funções extrafiscais.
Além disso, a MP produzirá efeitos imediatos apenas para limitar as compensações tributárias. No entanto, essa medida também carece de urgência, uma vez que não há justificativa para um aumento significativo no volume de créditos compensados em 2024, em comparação com exercícios anteriores. Eventuais falhas no planejamento orçamentário não podem ser usadas como desculpa para ignorar o requisito constitucional da urgência. Se o Executivo desejasse, poderia ter apresentado um projeto de lei sobre o assunto ao Congresso Nacional ao longo de 2023.
Adicionalmente, a reoneração da folha e a revogação do Perse representam claramente um aumento da carga tributária, o que, nos termos do artigo 62, §2º, da Constituição Federal de 1988, só poderia entrar em vigor em 2024 se fosse convertida em lei até o final de 2023.
Em segundo lugar, no que diz respeito à reoneração parcial da folha de pagamentos, a MP 1.202/23 ignora a separação dos poderes e desrespeita o Poder Legislativo. Um dia antes de sua publicação (27/12/2023), o Congresso Nacional derrubou o veto presidencial e aprovou a Lei nº 14.784/23 para prorrogar a vigência do regime da CPRB. Além disso, a Constituição Federal proíbe a reedição de medidas provisórias na mesma sessão legislativa sobre questões já rejeitadas. O caso da MP 1.202/23 é ainda mais preocupante devido ao intervalo de apenas um dia entre as ações, o que representa uma afronta à democracia e pode resultar em sua devolução.
Em terceiro lugar, a MP compromete seriamente a segurança jurídica. Especialmente no que se refere à reoneração da folha e à revogação parcial do Perse, os contribuintes foram pegos de surpresa no final de 2023, com a perspectiva de um aumento substancial da carga tributária a partir do segundo trimestre de 2024. Essa incerteza prejudica os contribuintes, que não têm como planejar adequadamente seus orçamentos. Além disso, os contribuintes não podem ter certeza se a medida será suspensa pelo Congresso ou pelo Judiciário. Em resumo, a MP não oferece previsibilidade mínima em relação às obrigações tributárias.
Outra preocupação em relação à segurança jurídica é a previsão de que a desoneração da folha de pagamentos, programada para expirar em abril de 2024, seja encerrada com a implementação da reoneração gradual para aqueles que optarem pelo regime da CPRB. A MP ignora o fato de que as empresas que escolherem esse regime tributário deverão formalizar essa opção em janeiro de 2024, tornando-a irrevogável para o ano-calendário, conforme estipulado na Lei 12.546/2011. Portanto, a MP não deveria alterar essa sistemática antes do término do exercício fiscal de 2024.
Em quarto lugar, a revogação parcial dos benefícios fiscais do Perse levanta questões legais. O benefício foi concedido por um prazo definido de 60 meses, e a própria Lei nº 14.148/21 prevê que sua fruição depende da regularidade dos contribuintes perante o Cadastro Único de Convênios (Cadastrur). Como se trata de uma isenção concedida por um período específico e sujeita a certas condições, não pode ser revogada sem que se cumpra o disposto no artigo 178 do Código Tributário Nacional.
Por fim, a limitação das compensações de créditos decorrentes de decisões judiciais transitadas em julgado viola o princípio da segurança jurídica. Essa restrição cria uma situação em que o Estado se beneficia indevidamente à custa da limitação do direito fundamental de pagar apenas a carga tributária legalmente devida. A limitação representa um incentivo à cobrança de tributos que podem ser considerados inconstitucionais ou ilegais, uma vez que, mesmo que posteriormente esses tributos sejam considerados inválidos, sua devolução será parcelada. Durante esse período, os contribuintes financiarão o Estado, o que é uma motivação declarada desde a edição da MP.
Em conclusão, a Medida Provisória 1.202/23 apresenta diversos problemas e questionamentos jurídicos. Em um ano já marcado por mudanças tributárias em 2023, essa medida foi divulgada no último dia possível, o que não contribui para melhorar o relacionamento entre o Fisco e os contribuintes. Se a MP for mantida e posteriormente se tornar lei, provavelmente será uma fonte contínua de litígios e incertezas no cenário tributário brasileiro.
Dr. Júlio N. Nogueira
Advogado
OAB/BA 14.470
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